Marcelo Albuquerque Corrêa
Membro efetivo – Cadeira no. 54 – Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais
Como citar este artigo:
CORRÊA, Marcelo Albuquerque. De Portugal à Congonhas: uma breve história dos sacramentes europeus e suas influências na arte mineira. REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE MINAS GERAIS. v.52, p.51 – 74, 2025.
Resumo:
O presente artigo investiga as conexões simbólicas e formais entre os sacromontes católicos e a paisagem sagrada de Minas, com ênfase na criação do conjunto do Santuário de Bom Jesus do Matosinhos de Congonhas. A análise parte do conceito de sacromonte no contexto da religiosidade católica, retomando suas origens nas peregrinações medievais e sua consolidação nos modelos barrocos italiano e português. Analiso a partir das longas permanências das tradições, de forma análoga ao pensamento do historiador Fernand Braudel, a respeito de seu célebre estudo sobre a longa duração histórica. Discorre-se sobre as montanhas sagradas em diversas tradições religiosas, o simbolismo dos zigurates e pirâmides, bem como a geografia metafísica da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Em seguida, apresentam-se as influências clássicas, cristãs e populares na concepção dos santuários mineiros, com destaque para os aspectos iconográficos, artísticos e litúrgicos. O estudo também aborda o papel do Museu de Congonhas na preservação da memória e dos bens culturais do santuário.
Palavras-chave: Sacromontes; Congonhas; Barroco Mineiro; Aleijadinho.
Abstract:
This article investigates the symbolic and formal connections between Catholic sacromontes and the sacred landscape of Minas Gerais, with emphasis on the creation of the Bom Jesus do Matosinhos Sanctuary complex in Congonhas. The analysis begins with the concept of sacromonte in the context of Catholic religiosity, tracing its origins in medieval pilgrimages and its consolidation through Italian and Portuguese Baroque models. The study follows the notion of enduring traditions, in a manner analogous to the perspective of historian Fernand Braudel regarding his renowned study on the longue durée in historical processes. It examines sacred mountains across various religious traditions, the symbolism of ziggurats and pyramids, as well as the metaphysical geography of Dante Alighieri’s Divine Comedy. The article then explores classical, Christian, and popular influences in the conception of sacred sites in Minas, with particular attention to iconographic, artistic, and liturgical aspects. It also addresses the role of the Museum of Congonhas in the preservation of the sanctuary’s memory and cultural heritage.
Keywords: Sacromontes; Congonhas; Baroque of Minas Gerais; Aleijadinho.
1. Introdução
O espaço sagrado, ao longo da história das civilizações, tem sido constantemente representado por montanhas, colinas e elevações naturais ou artificiais. Essa verticalidade simbólica remete à busca do transcendente, à aproximação entre o homem e o divino, ao sítio pontífice (que conecta o céu e a terra), expressada por meio de topografias elevadas que assumem função religiosa, ritual e cosmológica. Na tradição católica, essa geografia do sagrado alcança sua expressão paradigmática nos chamados sacromontes: complexos arquitetônicos e escultóricos erguidos em elevações, onde se delineia um itinerário espiritual vinculado à vida de Cristo, aos mistérios da Paixão ou aos episódios da vida dos santos. Esses percursos devocionais, formados por capelas, escadarias, alegorias e conjuntos escultóricos, remontam às peregrinações medievais e atingem seu apogeu entre os séculos XVII e XVIII, consolidando-se como expressão tanto da alta cultura católica europeia quanto da cultura popular.
Essa continuidade entre a antiga concepção cristã e suas manifestações no século XVIII constitui exemplo de permanência que transcende as mudanças conjunturais, reafirmando uma forma tradicional. O conceito de longa duração, formulado por Fernand Braudel em 1958 (Braudel, 1990), refere-se às estruturas históricas de permanência que permanecem ativas por séculos ou até milênios, condicionando continuamente a organização das sociedades humanas. Em oposição à curta duração, que trata de acontecimentos efêmeros como revoluções, batalhas ou governos, e à média duração, que abarca ciclos econômicos, sociais ou institucionais com duração de algumas gerações, a longa duração envolve elementos quase imutáveis: as mentalidades coletivas, a geografia, os sistemas de crenças e os regimes climáticos. No caso de Minas Gerais, o sacromonte de Congonhas ilustra esse conceito.
Em território brasileiro, especialmente em Minas Gerais, essa tradição não é apenas transposta, mas recriada com vigor e originalidade. O Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, edificado sob a inspiração direta dos modelos portugueses, especialmente do sacromonte de Braga, constitui um dos mais notáveis exemplos dessa geografia sagrada no Novo Mundo. Neste contexto, observa-se uma síntese singular entre a erudição teológica e simbólica europeia e a religiosidade popular do interior mineiro, manifestada nas romarias, no jubileu, na oralidade e na cultura visual vernacular. A paisagem mineira, com suas serras, igrejas e caminhos de fé, torna-se suporte da fé encarnada no território e na memória coletiva.
Tema de uma recente palestra no Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, este artigo propõe uma análise histórica, simbólica e estética dessas estruturas, buscando compreender as permanências, adaptações e recriações da tradição dos sacromontes no contexto da paisagem cultural mineira. Para tanto, consideram-se múltiplos referenciais: desde a geografia metafísica das montanhas sagradas da Divina Comédia, passando pelos sacromontes italianos e portugueses, até as alegorias visuais e os elementos arquitetônicos e iconográficos do barroco mineiro. Entende-se como fundamental os argumentos de Mircea Eliade (2010), em O Sagrado e o Profano, da existência de lugares sagrados e não sagrados, de locais considerados como o Axis Mundi, o “Centro do Mundo” representado por uma coluna universal que liga e sustenta o Céu e a Terra, e cuja base estará cravada no mundo inferior (Infernos).
Nesse percurso de investigação, insere-se também a série artística “Sacromontes”, composta por pinturas, desenhos e aquarelas de minha autoria dedicada à exploração poética da paisagem mineira em sua dimensão religiosa e memorial. Longe de constituírem registros documentais, essas imagens evocam a tradição cristã por meio de representações densas e expressionistas de igrejas, capelas, calvários e monumentos sagrados. A referência central é o próprio Santuário de Congonhas, em torno do qual se irradiam outras formas de religiosidade construída. A arquitetura, a natureza e a crença entrelaçam-se, formando imagens que funcionam como construções simbólicas da memória e imaginação. Assim, o presente artigo busca articular o olhar do historiador e do artista, investigando a paisagem como expressão de fé, identidade e criação.

Figura 1: Marcelo Albuquerque. Sacromonte, Óleo sobre tela, 100 x 100 cm (2017).
2. A solenidade, idealismo e expressividade na história da escultura clássica
A arte grega desenvolveu-se em três grandes períodos estilísticos que marcaram profundamente a história da arte ocidental: arcaico, clássico e o helenístico. O período arcaico (c. 700–480 a.C.) caracteriza-se pela rigidez formal, influências egípcias e orientais, e uma busca inicial por representação naturalista. As esculturas, como os kuroi e korai, apresentam poses frontais, “sorriso arcaico” e simetria marcada. O arcaísmo torna-se referência na arte modernista, que busca inspirações tanto nos períodos pré-clássicos quanto em culturas exóticas, como se observa na obra do escultor Brancusi e no cubismo de Picasso e Braque. Este período ecoa no Art Déco do século XX, especialmente em artistas como Vicente do Rego Monteiro, cuja estilização das formas remete ao formalismo arcaico, pré-colombiano ou egípcio. Essa relação estética também pode ser percebida no Cristo Redentor do Rio de Janeiro, cuja forma monumental e sintética expressa uma nobreza serena e estilizada que remete à solenidade e frontalidade do período arcaico.
O período clássico (c. 480–323 a.C.) foi marcado pelo ideal de equilíbrio, proporção e racionalidade. A arte alcança uma maturidade em que corpo e espírito se harmonizam sob os princípios da matemática, da simetria e da ordem cósmica, especialmente nos cânones propostos por escultores como Policleto e desenvolvidos por Fídias. Essa concepção de beleza transcende o tempo, tornando-se atemporal e associando-se ao idealismo filosófico grego, bem como à busca da perfeição formal associada à beleza matemática. O impacto dessa estética é tão duradouro que pode ser identificado em manifestações artísticas posteriores, inclusive em ícones religiosos cristãos, como as esculturas renascentistas. O Cristo Pantocrator, no contexto bizantino, exibe uma serena solenidade e proporção simétrica que reiteram o conceito de divindade imutável e eterna. É o Deus fora do tempo, já ressuscitado e reinando em todas as eras. Ele não está no tempo físico do homem, sofrendo ou pregando, como veremos na teatralidade barroca, que representa o Cristo em seus aspectos humanos e expressivos. Tais imagens dialogam com o espírito clássico ao transmitir transcendência e universalidade por meio da forma idealista e projeções de uma beleza transcendental, servindo como modelo ético e estético.

Figura 2: os períodos arcaico, clássico e helenístico e comparações com outros períodos artísticos. Acima: Arcaico: Kroisos Kouros. Mármore Parian. Encontrado em Anavyssos, Ática. C. 530 a.C. Museu Arqueológico de Atenas. Foto: Marcelo Albuquerque (2024). Clássico: Doríforo e suas proporções. Galeria Uffizi, Florença. Foto: Marcelo Albuquerque (2015). Helenístico: O Grupo Laocoonte, cópia romana segundo um original grego do séc. I a.C. (c. 50 a.C.). Mármore. Aguesandro, Polidoro e Atenodoro. Museus Vaticanos. Foto: Marcelo Albuquerque (2025). Adaptação: Marcelo Albuquerque (2025). . Abaixo: Vicente do Rego Monteiro (Crucificação). Fonte: https://virusdaarte.net/vicente-do-rego-monteiro-a-crucifixao/. Mosaicos do Batistério de Florença. Antônio Francisco Lisboa: Cruz às Costas. Congonhas, Minas Gerais. Fotos: Marcelo Albuquerque, (2015; 2016). Adaptação do autor.
Com a ascensão de Alexandre, o Grande, inicia-se o período helenístico (323–146 a.C.), marcado pelo abandono da serenidade clássica e pelo mergulho no pathos, no drama, na emoção e na teatralidade. As esculturas tornam-se dinâmicas, com composições diagonais, expressões intensas e cenas que evocam dor, êxtase ou triunfo. O grupo escultórico do Laocoonte, por exemplo, retrata o sofrimento humano em seu ápice, como se os personagens fossem atores de tragédia no auge de sua performance. Essa expressividade encontra um paralelo notável na arte barroca e, por extensão, na de Antônio Francisco Lisboa, em Minas Gerais, cujas figuras do ciclo da Paixão revelam contorções corporais, gestos expressivos e rostos marcados por uma dor visceral que remete diretamente ao pathos helenístico.
Assim, ao considerar as três fases da arte grega em relação a expressões modernas e cristãs, observa-se um modelo de entendimento e uma permanência de paradigmas formais e espirituais que atravessam os séculos: o arcaico reaparece nas linhas estilizadas, solenes e sintéticas; o clássico permanece como símbolo de uma beleza eterna e metafísica, remetendo ao idealismo platônico; e o helenístico ressurge nos gestos dramáticos e emocionais da arte barroca. Essas continuidades revelam não apenas uma filiação formal, mas uma persistência de valores estéticos e simbólicos na construção do imaginário ocidental.
3. O conceito de sacromonte na tradição antiga e católica
O termo “sacromonte” refere-se a um tipo de santuário erguido em colinas ou montanhas, geralmente composto por capelas, esculturas e estações que representam a Via Crucis e episódios da vida de Cristo, da Virgem Maria ou dos santos, frequentemente organizados em percursos que simulam uma ascensão espiritual. Esses complexos arquitetônicos e devocionais surgiram entre os séculos XV e XVII como resposta simbólica e pastoral a um contexto de profunda transformação no mundo cristão. Tiveram suas raízes nas intensas peregrinações medievais à Terra Santa, que, desde os séculos IV e V, constituíam a maior expressão da fé e da penitência cristã, com destino principal em Jerusalém, Belém e Nazaré, locais diretamente associados à vida de Cristo. Associa-se diretamente aos esforços de Santa Helena, mãe do imperador Constantino, por volta do ano 326 d.C., ocasião em que, segundo a tradição cristã, teria descoberto a Vera Cruz, a cruz verdadeira na qual Jesus foi crucificado. Ela ordenou a construção de igrejas e santuários na Terra Santa, como a Basílica do Santo Sepulcro e a Igreja da Natividade, e transferiu relíquias de Cristo para a Europa, como as que estão na Basílica Santa Cruz de Jerusalém, em Roma.

Figura 3: Relíquias da Vera Cruz, na Basílica de Santa Cruz de Jerusalém (Roma). Fotos: Marcelo Albuquerque (2025).
Contudo, a partir do século VII, com a expansão do Islã sob o comando dos primeiros califas omíadas e, mais tarde, abássidas, o acesso dos cristãos à Palestina tornou-se progressivamente mais difícil. A situação agravou-se nos séculos XI e XII, quando o controle da região passou para dinastias menos tolerantes ao cristianismo, como os Fatímidas xiitas do Egito e, posteriormente, os turcos seljúcidas. Em 1009, por ordem do califa Al-Hakim bi-Amr Allah, do Califado Fatímida, foi destruída a Igreja do Santo Sepulcro, um dos templos cristãos mais sagrados, construída no local tradicional da crucificação e ressurreição de Jesus. Tal ato gerou profunda comoção no Ocidente cristão e alimentou um ressentimento que culminaria na pregação das Cruzadas.
Com a tomada de Jerusalém pelos seljúcidas em 1071, após a batalha de Manziquerta, e a crescente insegurança das rotas para o Oriente, o papa Urbano II convocou, em 1095, o Concílio de Clermont, conclamando os príncipes cristãos a empreender a Primeira Cruzada. A ocupação cristã da cidade santa em 1099 e a fundação do Reino Latino de Jerusalém aliviaram temporariamente essa tensão, mas logo novas ofensivas muçulmanas, lideradas por figuras como Zangui de Mossul, Nur ad-Din e, sobretudo, Salah ad-Din (Saladino), restauraram o domínio islâmico sobre a Palestina. A reocupação de Jerusalém por Saladino, em 1187, após a Batalha de Hattin, marcou o fim da presença cruzada contínua na cidade e iniciou uma fase em que o acesso cristão à Terra Santa passou a ser regulado por pactos intermitentes, sujeitos à instabilidade política e a constantes ameaças. Nesse cenário de guerras e de interdições às peregrinações, o mundo cristão europeu passou a desenvolver substitutos simbólicos para os locais sagrados, promovendo a criação de “Jerusaléns místicas” ou “sacromontes” em seu próprio território. Essas estruturas visavam não apenas suprir a impossibilidade de acesso físico aos lugares santos, mas também proporcionar experiências devocionais intensas e pedagogicamente eficazes, reforçando os princípios da doutrina cristã por meio de percursos espirituais dramatizados, que enfatizavam o sentido de penitência ao longo de subidas tortuosas.
A sacralidade da montanha é uma constante antropológica que atravessa culturas, religiões e civilizações, sendo percebida como um arquétipo da elevação espiritual e da mediação entre o terreno e o celeste. A sacralização vertical das montanhas, portanto, não se limita a expressões religiosas específicas, mas manifesta uma tendência mais ampla que associa o alto à proximidade do divino, ao sublime e ao sagrado. Ao mesmo tempo, essas montanhas tornam-se palcos de revelações, símbolos cosmogônicos e itinerários iniciáticos, demonstrando a persistência do motivo da elevação como signo da transformação espiritual em múltiplas tradições religiosas e culturais. De acordo com Eliade:
“Mas, como não tardaremos a ver, não se trata de uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere” (ELIADE, 2010, p.18).
No judaísmo, o Monte Sinai, onde Moisés recebeu as Tábuas da Lei, simboliza o local privilegiado da aliança entre Deus e seu povo, marcado por teofanias e manifestações divinas. De igual forma, o Monte Moriá, tradicionalmente associado à quase imolação de Isaac por Abraão, assume valor simbólico na história da fé e da obediência, local do antigo Templo de Salomão. No cristianismo, a montanha adquire igualmente significados teológicos profundos: o Monte das Oliveiras é o cenário da oração e da prisão de Cristo; o Monte Tabor é o local da Transfiguração, onde a glória divina se revela; e o Gólgota, pequena colina nos arredores de Jerusalém, torna-se o cume do sacrifício redentor. No islamismo, a Cúpula da Rocha, situada sobre o mesmo Monte Moriá, marca o ponto de onde o profeta Maomé teria ascendido aos céus, unindo simbolicamente as tradições abraâmicas e reforçando a sacralidade compartilhada da montanha. Entre os povos andinos, especialmente os quéchuas e aimarás, os Apus são montanhas sagradas concebidas como entidades espirituais protetoras e ancestrais, onde habitam divindades tutelares. No hinduísmo e no budismo, o mítico Monte Meru é concebido como o centro do universo, o axis mundi, em torno do qual giram os mundos superiores e inferiores, um modelo simbólico.
No mundo greco-romano, o Monte Olimpo, situado na Tessália, é considerado a morada dos deuses do panteão helênico. Embora não fosse objeto de culto litúrgico como nos monoteísmos, o Olimpo simboliza o topo do cosmos mítico, onde as divindades observam e regem os destinos humanos. O Monte Cavo, também chamado Monte Albano, era um local sagrado para os povos itálicos da antiga Itália, especialmente os Albani, e, mais tarde, para os romanos. Sua simbologia principal reside na sua função como centro religioso e político da Liga Latina, uma união de cidades latinas que se reuniam no monte para celebrar sacrifícios e tomar decisões conjuntas. Da mesma forma, no Japão, o Monte Fuji, vulcão sagrado e marco da paisagem nipônica, é objeto de veneração no xintoísmo e no budismo japonês, sendo considerado porta de entrada para o mundo espiritual e local de iluminação. A peregrinação ao cume do Fuji, tradicional entre monges e devotos, simboliza uma ascensão interior e um processo de purificação.
As estruturas escalonadas da Mesopotâmia, chamadas zigurates, segundo as principais interpretações da arqueologia e da história das religiões, simbolizam a montanha cósmica, mediadora entre terra e céu, entre o mundo dos homens e o domínio dos deuses. Erguidas nas principais cidades da Suméria, Acádia, Assíria e Babilônia, como Ur, Uruk, Eridu e Babilônia, essas construções funcionavam como centros cerimoniais e templos elevados, destinados a tornar presente o sagrado por meio da elevação. O zigurate da antiga Babilônia, tradicionalmente identificado como a lendária Torre de Babel mencionada no Gênesis (Gn 11,1-9), é um exemplo emblemático dessa simbologia. De acordo com o texto bíblico, os homens desejaram alcançar o céu construindo uma torre cujo topo tocasse o céu, motivados por orgulho e desejo de autoafirmação. A narrativa da confusão das línguas e da dispersão dos povos é frequentemente interpretada como uma crítica à pretensão humana de rivalizar com o divino. No entanto, do ponto de vista simbólico, a Torre de Babel pode ser compreendida como um zigurate elevado ao extremo, um projeto arquitetônico que sintetiza a aspiração humana pela verticalidade sagrada e pela centralidade cósmica.
As pirâmides egípcias, embora tenham função funerária, partilham essa lógica simbólica de mediação vertical. Serviam como túmulos reais, mas também representavam a colina primordial (benben) que emergiu das águas do caos no mito heliopolitano da criação. Sua forma geométrica, perfeitamente alinhada aos pontos cardeais e aos corpos celestes, reforça seu papel como símbolo da ascensão da alma, conduzindo o ka do faraó ao reino dos deuses, especialmente a Rá, o deus solar. Assim, tanto zigurates quanto pirâmides artificializam a geografia natural, transformando o relevo em topografias sagradas construídas, cujas funções eram simultaneamente litúrgicas, políticas e metafísicas. Embora distintas dos sacromontes cristãos em conteúdo, essas estruturas compartilham com eles a concepção fundamental de que o espaço físico pode ser manipulado e arquitetonicamente construído para fins transcendentais.
4. A Divina Comédia e sua geografia metafísica
Na Divina Comédia, obra-prima da literatura medieval cristã, Dante Alighieri concebe uma geografia metafísica do Inferno, Purgatório e Paraíso. Eles estão organizados segundo uma lógica moral e simbólica profundamente teológica. O Purgatório, em particular, é descrito como uma montanha imensa que se eleva no hemisfério austral, exatamente oposta ao Inferno, que se aprofunda no hemisfério boreal. Segundo a cosmologia dantesca, essa montanha teria se formado a partir da terra expulsa pela queda de Lúcifer, lançado do céu como um meteoro flamejante em decorrência de sua rebelião contra Deus. O impacto da queda, motivada pelo orgulho e pela desobediência, teria escavado o abismo infernal e, ao mesmo tempo, elevado a terra do outro lado do mundo, gerando assim a montanha do Purgatório, o espaço reservado à purificação das almas arrependidas.
Lúcifer, símbolo do mal absoluto, está aprisionado no centro da Terra, no ponto mais profundo do Inferno, congelado no lago do rio Cócito, cercado pelo gelo eterno que simboliza sua separação definitiva da fonte do bem, que é Deus. O frio em que se encontra é, paradoxalmente, o oposto do fogo purificador: trata-se de um gelo de ausência, de privação absoluta da luz e do calor divinos, em contraste direto com a luz beatífica do Paraíso. Essa imagem possui valor profundamente simbólico: o amor de Deus, identificado com a luz, é calor que vivifica e eleva; sua ausência representa escuridão e imobilidade. Essa oposição ressoa na estética da luz nas catedrais góticas, onde os vitrais coloridos filtram a luz solar como teofanias, revelando o divino por meio do esplendor da matéria transfigurada. O espaço sacro gótico, vertical e luminoso, manifesta a presença de Deus pela sublimidade da luz; já o Inferno dantesco revela sua ausência pelo aprisionamento nas trevas e no frio.

Figura 4: Ilustrações da geografia metafísica da Divina Comédia. Casa de Dante Alighieri, Florença. Fotos: Marcelo Albuquerque (2025).
A montanha do Purgatório, por sua vez, é organizada em sete terraços, correspondentes aos sete pecados capitais (soberba, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria), que são purificados progressivamente por meio de exercícios espirituais e da aquisição das virtudes opostas. Cada nível da montanha é guardado por anjos, e o percurso é guiado por exemplos da Escritura, da mitologia clássica e da história, que auxiliam o penitente a compreender e redimir sua culpa. É um itinerário ascensional e moral, no qual corpo e a alma participam da purificação. O cume da montanha abriga o Paraíso Terrestre, local onde Adão e Eva viveram antes da queda e onde Dante reencontra Beatriz, sua guia na etapa final da jornada. Este espaço marca a transição entre o tempo e a eternidade, entre a peregrinação e a visão beatífica.
A simbologia do purgatório dantesco está intimamente ligada à ideia de esforço espiritual e de reconciliação entre justiça e misericórdia. Trata-se de um espaço de esperança, onde o sofrimento possui fim e propósito. Diferentemente do Inferno, o purgatório é dinâmico: os penitentes caminham, sobem, oram e aprendem. Nessa perspectiva, sua imagem como montanha purificadora guarda evidente afinidade com os sacromontes católicos, concebidos como percursos físicos e simbólicos rumo à santidade. Em ambos os casos, o trajeto não é apenas espacial, mas interior: a elevação da montanha expressa a elevação da alma. Assim como os sacromontes conduzem o fiel por cenas da Paixão, levando-o à contemplação e à conversão, o purgatório de Dante conduz o espírito humano da desordem do pecado à ordem do amor divino.
5. Os sacromontes italianos e portugueses: um ideal de alta cultura e cultura popular
Os Sacri Monti do Piemonte, no norte da Itália, como os de Varallo, Varese e Orta, erigidos entre os séculos XV e XVII, são exemplos de complexidade arquitetônica, teatralidade barroca e erudição simbólica. Representavam não apenas lugares de oração, mas também encenações pedagógicas da fé. Em Portugal, destacam-se o Bom Jesus do Monte, em Braga, e o Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego. Essas obras sintetizam escadarias monumentais, fontes, alegorias e capelas, unindo fé, arte e racionalidade simbólica em um ideal civilizacional profundamente enraizado no catolicismo europeu.

Figura 5: Sacro Monte di Varallo Sesia e Sacromonte de Oropa. Fonte: Wikimedia Commons.

Figura 6: Santuário de Bom Jesus do Monte, Braga. Fotos: Marcelo Albuquerque (2023).

Figura 7: Santuário de Nossa Senhora dos Remédios, Lamego. Santuário de Bom Jesus do Monte, Braga. Abaixo, Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, Porto. Fotos: Marcelo Albuquerque (2023).
O Santuário do Bom Jesus do Monte, em Braga, constitui um dos mais notáveis exemplos de sacromonte europeu, integrando com rara harmonia arquitetura, paisagem natural e simbologia espiritual. Sua construção foi iniciada em 1722 e desenvolvida ao longo dos séculos XVIII e XIX, combinando elementos barrocos, rococós e neoclássicos, estes últimos evidentes na igreja principal projetada por Carlos Amarante em 1784. Concebido como uma peregrinação ascensional, o percurso arquitetônico respeita o relevo montanhoso, articulando capelas da Via Sacra com esculturas em tamanho natural que dramatizam os episódios da Paixão de Cristo. Entre os destaques estão a Escadaria dos Cinco Sentidos e a Escadaria das Três Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade), acompanhadas de fontes simbólicas que associam a fluidez da água à purificação espiritual. Em 1882, foi instalado no local um dos primeiros funiculares do mundo, movido por contrapeso de água, o que facilitou o acesso ao cume do santuário.
6. Congonhas, Feliciano Mendes e a herança dos sacromontes
De acordo com Myrian Ribeiro (2020), a fundação do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, está ligada à figura do português Feliciano Mendes, ex-minerador que, após ser acometido por uma grave enfermidade, teria alcançado a cura por intercessão do Senhor Bom Jesus. Em agradecimento pela graça recebida, Feliciano decidiu realizar um ex-voto monumental, consagrando o restante de sua vida e sua fortuna à construção de um oratório no alto do Morro do Maranhão, em 1757. Ali, passou a viver como ermitão, em penitência e recolhimento, convertendo-se em símbolo vivo da devoção popular. Com o tempo, doou todos os seus bens em ouro e passou a peregrinar pela região, carregando um pequeno oratório portátil com o qual recolhia esmolas para a continuidade da obra sagrada. Essa atitude uniu elementos da ascese pessoal, do gesto devocional coletivo e da teologia da promessa, moldando um dos núcleos mais significativos da fé e da arte na América portuguesa. A imagem do Senhor Bom Jesus das Necessidades, encomendada posteriormente em Portugal, chegou ao Brasil para ocupar o altar-mor do santuário, ampliando o prestígio do culto e fortalecendo o caráter sacro do local.

Figura 8: Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, Congonhas, Minas Gerais. Fotos: Marcelo Albuquerque (2005).
Após a morte de Feliciano Mendes, em 1765, sua obra foi ampliada e enriquecida por uma constelação de artistas e artesãos, que transformaram o santuário em um dos mais imponentes sacromontes das Américas. Inspirado nos modelos portugueses, especialmente o Bom Jesus do Monte, em Braga, o complexo em Congonhas passou a abrigar as célebres Capelas dos Passos da Paixão, dispostas ao longo da encosta do morro, em encenação processional da Via Crucis. O percurso culmina com os doze Profetas em pedra-sabão, esculpidos por Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, entre 1796 e 1800. Além disso, contribuíram para o conjunto nomes como Mestre Ataíde, que realizou a policromia das esculturas; Francisco Vieira Servas e Jerônimo Félix Teixeira, autores de talhas e imagens; e Felizardo Mendes, ourives responsável pelos adornos litúrgicos. O projeto revela um equilíbrio entre erudição e religiosidade popular, fundindo alegorias clássicas, virtudes cristãs, expressões barrocas e elementos vernaculares, como a romaria, o sincretismo e a música litúrgica regional. A contribuição pessoal de Aleijadinho, inclusive nas figuras de maior dramaticidade, confere ao conjunto um caráter profundamente teatral e emocional, conectando-o simbolicamente à expressividade barroca e à herança helenística.
7. As alegorias das virtudes e os Passos da Paixão
Na escadaria do Bom Jesus do Monte, em Braga, a disposição das alegorias das Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade) coroa o percurso iniciado nos Cinco Sentidos, num movimento ascensional que propõe a peregrinação física e um caminho simbólico de purificação e elevação da alma. Essa estrutura é mais que decorativa: é uma narrativa doutrinária integrada à arquitetura e embelezamento urbano, em que cada fonte e cada figura escultórica convida o peregrino à contemplação e à conversão interior. Conforme dito, a integração entre paisagem, arte e espiritualidade é concebida com sofisticação filosófica e catequética, articulando o sensível e o inteligível, o corpo e o espírito.

Figura 9: Capela-mor da Basílica Menor de Nossa Senhora do Pilar, Ouro Preto. Virtudes Teologais e Cardeais (lado esquerdo). Abaixo, Museu da Inconfidência e as Virtudes Cardeais (Ouro Preto). Abaixo, à esquerda, a Virtude Cardeal da Fortaleza. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2021.
Em Congonhas, as Virtudes não aparecem em esculturas e relevos, ao contrário de Braga. Entretanto, em Ouro Preto, esse ideal de elevação moral ganha expressão simbólica na Basílica do Pilar e na fachada do Museu da Inconfidência, antiga Casa de Câmara e Cadeia. Essa articulação simbólica das Virtudes, como princípio ordenador da vida pública e privada, atinge um refinamento particular na capela-mor da Basílica do Pilar, onde as Virtudes Cardeais e Teologais do período do barroco joanino, estão esculpidas de forma monumental, compondo um programa iconográfico coerente com os princípios do catolicismo tridentino. As figuras da Fé, Esperança e Caridade, dispostas em torno do altar como colunas invisíveis do sacrário, orientam a relação direta com os mistérios da Eucaristia, enquanto as Virtudes Cardeais reforçam os valores da ação prudente, justa, forte e temperante. A disposição das esculturas não é meramente ornamental: trata-se de um discurso visual doutrinal, no qual a escultura catequética participa da função litúrgica do espaço. O conjunto do Pilar revela, assim, o ponto alto da fusão barroca entre filosofia clássica (antes e depois de Cristo) e teologia medieval, promovendo uma pedagogia da forma que conduzia os fiéis à contemplação do mistério e à assimilação das virtudes como prática de vida. Nesse contexto, Braga, Congonhas e Ouro Preto compartilham uma mesma matriz simbólica e espiritual: a da ascensão moral pelo exercício da virtude, mediada pela arte, pela arquitetura e pela fé.

Figura 10: Santuário de Bom Jesus do Monte (Braga). Virtudes Teologais da Fé e Caridade. Fontes do Cinco Sentidos. Fotos: Marcelo Albuquerque, 2023.
8. Referências iconográficas dos artistas mineiros
Como complemento ao uso e adequação das referências artísticas europeias, é conveniente citar as fontes iconográficas dos artistas que atuaram em Minas Gerais, especialmente no século XVIII. A produção artística mineira do período não pode ser compreendida sem considerar suas fontes, que foram amplamente apropriadas, adaptadas e reinterpretadas por escultores, pintores, ourives e entalhadores. Essa circulação de modelos e repertórios visuais ocorreu principalmente por meio de gravuras portuguesas, flamengas, italianas e alemãs, além de edições ilustradas da Bíblia, missais e tratados de iconologia. Um exemplo amplamente reconhecido é o célebre Iconologia de Cesare Ripa, publicado originalmente em 1593, que se consolidou como um manual de referência indispensável para a representação alegórica de virtudes, vícios, elementos, continentes e diversas personificações, sendo citado inclusive por Erwin Panofsky em sua obra Significado nas Artes Visuais. Outra fonte fundamental foram as gravuras da Bíblia de Demarne, analisadas por Hanna Levy, cujas imagens sacras influenciaram profundamente o vocabulário visual do Barroco luso-brasileiro. Essas gravuras permitiram aos artistas coloniais, mesmo sem contato direto com os centros de produção europeus, elaborar composições sofisticadas e coerentes com a iconografia da Igreja.
A circulação desses modelos também se evidencia na apropriação direta de imagens específicas. De acordo com Boher (2020), a gravura “A Queda do Homem”, do alemão Christoph Weigel, serviu como base para a composição realizada por Antônio Rodrigues Bello na matriz de Nossa Senhora de Nazaré, no distrito de Cachoeira do Campo. O uso do Missale Romanum de 1789 como fonte visual também foi recorrente, influenciando representações litúrgicas como a Santa Ceia de Manoel da Costa Ataíde na Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, onde a disposição dos apóstolos, os gestos e até os detalhes da mesa derivam de gravuras europeias. A atuação de artistas e gravadores como Antoine Mengin, medalhista francês e mestre de João Gomes Batista, evidencia também a transferência de saberes técnicos e estilísticos ao Brasil, especialmente por meio da Casa de Contos de Ouro Preto, que recebeu punções e gravadores da Casa da Moeda de Lisboa, conforme documentação de 1744. Embora Mengin tenha se recusado a exercer formalmente o papel de mestre, sua atuação influenciou diretamente figuras como Aleijadinho e Ataíde, reforçando a ligação entre a arte devocional mineira e os modelos de prestígio do Barroco Tardio europeu.

Figura 11: Silva F. (?) Missale Romanum (1789). Santa Ceia. Fonte: Bestnet Leilões. Acima, à direita, Manoel da Costa Ataíde: Santa Ceia. Igreja de São Francisco de Assis, Ouro Preto. Foto: Marcelo Albuquerque, 2021. Abaixo: Restituição de Sara à Abraão. Gravura de Demarne. Fonte: Wikimedia Commons (domínio público). Abaixo, à direita, a interpretação de Ataíde num painel lateral da capela-mor da Igreja de São Francisco, Ouro Preto (Marcelo Albuquerque, 2021).
Além dos tratados e livros litúrgicos, os artistas mineiros demonstraram familiaridade com os ornamentos e motivos decorativos do Rococó francês, presentes nas obras de desenhistas como Alexis Peyrotte, Gabriel Huquier e Franz Xaver Habermann, que criaram sofisticados motivos florais, volutas, arabescos e temas chinoiserie (chinesices) em crayon sobre papel, frequentemente reproduzidos em talhas e pinturas. Vale lembrar o gosto rococó no Sacro Império Romano-Germânico, especialmente nas decorações do Palácio de Sanssouci (c. 1745-1747) e em outros palácios e igrejas do sul da Alemanha e Áustria. Todo esse conjunto de fontes demonstra que a arte produzida em Minas Gerais, longe de ser isolada ou meramente imitativa, soube assimilá-las com engenho e sensibilidade locais, criando um barroco e um rococó singulares, ao mesmo tempo eruditos e enraizados no ambiente local.
9. Considerações finais
A transposição da geografia sagrada europeia para o território mineiro revela uma complexa operação simbólica e cultural, na qual o espaço natural é sacralizado, dramatizado e catequizado. Os sacromontes mineiros, sobretudo o de Congonhas, constituem monumentos de alta cultura, síntese de influências clássicas, cristãs e populares. Preservar esse patrimônio não é apenas conservar igrejas, capelas e esculturas, mas manter viva uma tradição espiritual, artística e pedagógica que conecta Minas ao mundo.
O Museu de Congonhas, inaugurado em 2015, atua como centro de pesquisa, documentação e educação patrimonial, dedicado à conservação do conjunto escultórico e arquitetônico. Este museu, fruto de uma parceria entre a UNESCO, o IPHAN e a Prefeitura de Congonhas, foi concebido para potencializar a compreensão e a valorização das múltiplas dimensões do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, patrimônio cultural da humanidade. O projeto arquitetônico, assinado por Gustavo Penna, vencedor de concurso nacional, concretiza essa missão por meio de uma edificação de 3.452,30 m² distribuída em três pavimentos que abrigam sala de exposições, reserva técnica, biblioteca especializada, auditório, espaço educativo, cafeteria e anfiteatro ao ar livre. O museu se configura como um centro de cultura e preservação, oferecendo uma exposição permanente dedicada às manifestações da fé no passado e no presente, especialmente à devoção, às romarias e aos ex-votos, além de ações educativas e temporárias que ampliam o debate sobre a arte e a religiosidade barroca. Integram seu acervo a coleção de arte sacra de Márcia de Moura Castro, composta por 342 peças adquiridas pelo IPHAN em 2011, e a biblioteca Fábio França, um dos mais relevantes acervos sobre arte barroca, fé e iconografia religiosa no Brasil.
Entre os maiores desafios enfrentados pela instituição está a preservação das esculturas dos Doze Profetas de Aleijadinho, localizadas ao ar livre no adro da Basílica. A remoção dos profetas originais de Aleijadinho para conservação e sua substituição por réplicas suscita debates éticos e museológicos: por um lado, protege-se o patrimônio contra intempéries e vandalismo; por outro, perde-se a autenticidade no contexto litúrgico original. A exposição contínua às intempéries, somada à ação de fungos, bactérias e atos de vandalismo, tem suscitado um prolongado debate sobre a retirada dos originais e sua substituição por réplicas. Apesar das propostas nesse sentido desde as décadas de 1970 e 1980, quando foram produzidos moldes de gesso de baixa durabilidade, a posição atual dos principais conservadores e estudiosos é a de manter os originais in situ, reforçando, em contrapartida, políticas eficazes de conservação preventiva e monitoramento constante. Foram confeccionados moldes flexíveis em silicone para alguns profetas, e realizado o processo de digitalização em 3D, coordenado pela UNESCO em parceria com o Grupo IMAGO da Universidade Federal do Paraná. Essa tecnologia permite não apenas a criação de réplicas de alta precisão, mas também o estudo detalhado das obras, o acompanhamento de sua degradação ao longo do tempo e a difusão virtual de seu conteúdo, assegurando tanto sua proteção quanto o acesso público, local ou remoto, a esse conjunto escultórico de relevância mundial. O museu, portanto, assume um papel na integração entre conservação científica, mediação cultural e valorização simbólica do barroco mineiro.
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